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Amostras de diversos tipos

Entrevista: Biobancos são fundamentais para a pesquisa

Gilles Landman

Os biorrepositórios e os biobancos são estruturas responsáveis pelo armazenamento e gerenciamento de amostras de diversos tipos de materiais humanos. Dentre eles estão tecidos, sangue, dentes e inúmeras amostras genéticas, que seguem normas e padrões nacionais e internacionais. Regulamentados pela Comissão Nacional de Ética em Pesquisa (Conep), esses biobancos devem seguir protocolos éticos e operacionais rigorosos. O Brasil possui um total de 97 unidades atualmente, em todas as regiões, muitas ligadas a instituições públicas e privadas – como as universidades. Um desses biobancos funciona na Universidade Federal de São Paulo (Unifesp). O professor doutor Gilles Landman, do Departamento de Patologia da Escola Paulista de Medicina da Unifesp, é o coordenador do Comitê Gestor do Biobanco da Instituição. Nesta entrevista exclusiva, o professor explica como funcionam e qual é a importância desses biorrepositórios para o avanço das pesquisas e para a busca de novos tratamentos para inúmeras doenças.Em termos gerais, o que é e como funciona um biobanco?

Um biobanco é uma coleção de materiais coletados com várias finalidades, e uma delas é a pesquisa – que é o caso do biobanco da Unifesp. Coletamos material biológico humano que deve ser guardado de uma forma muito cuidadosa para que não perca as características dos tecidos, porque a finalidade é utilizar este material em pesquisas futuras. Guardamos vários materiais, de vários tipos, que podem ser de pulmão, estômago e qualquer outro órgão, e até mesmo líquidos como sangue e urina. Este material pode ser guardado por vários anos ou por meses, e os pesquisadores entram em contato conosco e solicitam amostras quando estão desenvolvendo alguma pesquisa. E, como temos uma coleção bastante grande, conseguimos oferecer para os pesquisadores uma grande quantidade de um determinado material que pode ser muito raro e difícil de ser coletado.

O biobanco da Unifesp é um dos primeiros no Brasil?

Nosso biobanco está registrado na ­Conep como número 14, mas foi inaugurado oficialmente em 2020. O primeiro biobanco foi instalado no Hospital A.C. Camargo. Na época eu estava lá e o doutor Fernando Soares foi quem teve a ideia de criar um biobanco, onde já foram coletadas por volta de 120 mil amostras. Só que aquele biobanco é exclusivamente para câncer, enquanto aqui é bastante eclético. Inclusive, começamos com a Covid. Na verdade, a história do biobanco da ­Unifesp começa em 2011. Entramos com um projeto institucional na FINEP – financiadora de estudos e projetos vinculada ao Ministério da Saúde – e a Unifesp foi contemplada com cerca de R$ 10 milhões na época,  que era uma verba significativa. E 10% desse valor foi endereçado ao biobanco. Só que demoramos praticamente 10 anos para conseguir implementar e estruturar o biobanco de uma forma que conseguíssemos fazê-lo funcionar. Por isso, só começou a funcionar em 2020.

Há muita burocracia para se implantar um biobanco?

Não é exatamente uma questão de burocracia, mas de atender às normas éticas e de regulação dos biobancos. A Portaria 2.201 do Ministério da Saúde estabelece as diretrizes nacionais para biorrepositórios e biobancos de material biológico humano com finalidade de pesquisa. E a resolução 441 pode se referir a diferentes normativas dependendo do contexto. Ambas são de 2011. Então, para se implantar um biobanco é necessário ter um regimento interno e todos os procedimentos operacionais padrão já estabelecidos, ter um responsável – que é o coordenador – e ter obrigatoriamente a aprovação da Conep. E demoramos um ano e meio para conseguir essa aprovação, na época. Portanto, temos um regramento de como é coletado o material e quanto tempo demora para coletar. Porque, se coletarmos o material uma hora ou duas horas depois que foi tirado do corpo humano já está degenerado e não servirá para mais nada.

A estrutura física que um biobanco demanda é muito grande?

Tem de ter espaço físico designado e uma estrutura determinada, e aí depende de como o biobanco foi construído e que tipo de material vai ser coletado. Assim, pode ser um biobanco eclético como o nosso, mas também pode ser exclusivamente de tumores pulmonares, por exemplo, ou como o do A.C. Camargo que é só de tumores. Então, a designação da forma como o biobanco é constituído vai determinar como tem de ser feito. Na Unifesp, optamos por fazer um biobanco que tivesse acoplado um laboratório que permitisse extração de DNA e de RNA, e manipulação de amostras de sangue. Portanto, essa estrutura permite esse tipo de processamento. Isso quer dizer que é um laboratório de alta complexidade e que exige gente que trabalhe com nível de formação bastante alto, como mestrado, doutorado e pós-doutorado, para que as amostras sejam manipuladas de uma forma a oferecer para os pesquisadores uma qualidade muito boa. Eu acredito que uma grande maioria dos biobancos tem sido construída com esta estrutura. Mas, veja, existem características que variam. Por exemplo, o Instituto de Câncer do Estado de São Paulo (ICESP) tem um biobanco já constituído muito grande, que recebe uma grande quantidade de amostras essencialmente de câncer. A Fiocruz também tem uma estrutura grande, com várias instituições em vários locais e que estão constituindo uma rede de biobancos entre os institutos. E cada instituto tem o seu biobanco com característica específica para estudar um determinado tipo de doença. Então, a depender do tipo de amostra que vai se armazenar, precisa ter um laboratório específico. Vamos imaginar que o biobanco esteja armazenando células ou linhagens celulares, por exemplo. Neste caso, temos de ter um laboratório para a recuperação dessas linhagens celulares separado, que é diferente de tudo que temos aqui. Então, para cada biobanco existe uma característica específica para o seu desenvolvimento.

“Na Unifesp, optamos por fazer um biobanco que tivesse acoplado um laboratório que permitisse extração de DNA e de RNA, e manipulação de amostras de sangue.”

Quantas amostras já estão armazenadas no biobanco da Unifesp?

Hoje, temos por volta de 17 mil amostras. Como em 2020 estava no auge da pandemia, abrimos o biobanco e começamos a coletar sangue de pacientes infectados pelo SARS-CoV-2. Por isso, nosso biobanco tem muitas amostras de Covid, e isso significa que algumas das pesquisas que estão sendo desenvolvidas com material coletado são especificamente de Covid. Por exemplo, o pessoal da disciplina de Virologia do Departamento de Microbiologia e Imunoparasitologia começou um projeto temático muito grande, logo no início da pandemia, e passou a estudar os efeitos da Covid grave. Agora, estão olhando o material coletado de pacientes muito graves na UTI ou que eventualmente faleceram para verificar como era o perfil de resposta imune e o perfil de alterações imunológicas mais importantes. Assim, se houver outra pandemia com características similares (que não aconteça), conseguiremos entender todo o mecanismo da doença. Este é um bom exemplo de material guardado com alta qualidade, com possibilidade de se extrair DNA e RNA e, eventualmente, de fazer até análise proteômica como tem acontecido mais recentemente. Também estamos inseridos em uma modalidade especificamente dirigida para pesquisadores que têm um projeto para guarda de material em biobanco. Então, um pesquisador que tenha um tema qualquer para estudar e queira guardar amostras no biobanco poderá fazê-lo – chamamos de modalidade biorrepositória. Nesta modalidade, reservamos todas as amostras coletadas para a pesquisa dele. Mas, por outro lado, pedimos uma contrapartida que é uma alíquota, ou seja, um pouquinho dessa amostra que vai ser colocada no biobanco para disponibilizar para a comunidade. Assim, aquela alíquota não é do pesquisador, mas pública, o que acho muito útil. E, por outro lado, quando termina a pesquisa, se o pesquisador não for utilizar mais o restante das amostras, já ficam armazenadas no biobanco com a qualidade que queremos. Isso é de bastante valia e tem sido bem procurado.

Além da Covid, quais são as outras amostras que o biobanco possui?

Na medida em que fomos implantando o biobanco passamos a diversificar o tipo de amostra. Hoje, temos amostras de tumores de mama, pulmão e cérebro. Também estamos coletando biópsias de estômago, de pacientes que vão para endoscopia, e um pouco de urina de crianças para um estudo que está verificando crianças que nascem com defeito na via urinária, que têm um estreitamento do ureter e não conseguem fazer passar a urina. Existem marcadores que estão sendo estudados para ver se é possível fazer o diagnóstico só na urina, sem ter de fazer um procedimento invasivo. Além disso, temos coletado muitas amostras de punções aspirativas por agulha fina, utilizadas principalmente para o diagnóstico prévio de doenças da tireoide. A punção de tireoide é feita para realizar uma citologia e verificar se é um tumor ou se é apenas um bócio ou algo benigno. Também temos coletado grande quantidade desse material que vem de punções aspirativas de cabeça e pescoço – que chamamos de segmento cefálico. Além desses, todo tipo de material que puder ser coletado poderá ficar armazenado no biobanco da Unifesp.

Os estudos com essas amostras visam principalmente encontrar marcadores para certas doenças?

Veja, temos vários tipos de estudos, inclusive alguns que procuram marcadores para diagnóstico de determinadas doenças. Um exemplo é o câncer, para ver mutações de um gene. Então, é possível estudar uma grande quantidade dessas amostras e, com isso, identificar que tipos de genes estão alterados em determinados tumores. E isso é possível porque podemos extrair DNA e RNA dessas amostras. Por outro lado, a guarda dessas amostras permite que, quando forem estudadas, os pesquisadores possam verificar quais são os fatores prognósticos dessas doenças. Por exemplo, quais são os marcadores que vão indicar que um paciente tem mais probabilidade de disseminação do que o outro, ou de ter maior probabilidade de morte causada pelo tumor. Esse é outro tipo de estudo, que são os fatores prognósticos. E há estudos de ciência básica, que consistem em uma tentativa de verificar do que é composto determinado tecido de uma determinada doença, a exemplo de uma pneumonia. Resumidamente, com essas amostras é possível fazer um estudo de caracterização da doença, de fatores prognósticos e fatores preditivos para, por exemplo, sugerir um tratamento. Existem marcadores específicos que vão dizer que aquele tipo de lesão tem determinado tipo de marcador e existe uma terapêutica específica para aquilo, que chamamos de terapia- alvo. Eu trabalho com doenças de pele, mas minha especialidade é melanoma. No melanoma existe uma mutação bastante frequente que é a mutação do gene BRAF. Essa mutação enseja a possibilidade de que o paciente seja tratado com um anticorpo anti-BRAF. Daí, a terapia específica é bem alvo mesmo. Em pulmão tem vários tipos de terapias-alvo e há vários outros tipos de marcadores que podem ser estudados em materiais que estão guardados no biobanco e que, no futuro, podem ser identificados como locais de tratamento. Por isso, acho que a guarda de grande quantidade de material de alta qualidade, no futuro, poderá ajudar a desenvolver uma pesquisa com alto impacto, inclusive em publicações. No A.C. Camargo, o impacto das publicações em revistas de altíssimo impacto internacional a partir de pesquisas realizadas com material do biobanco subiu muito. Isso tem uma importância muito grande.

O biobanco da Unifesp tem um número significativo de publicações?

Temos pouco, porque o biobanco ainda é muito jovem. Na verdade, o biobanco atualmente serve às pós-graduações. Na Escola Paulista de Medicina são 33 programas de pós-graduação, com mais de 2 mil alunos. E o biobanco fica disponível para qualquer pesquisador. Temos, inclusive, um catálogo aberto ao público da Unifesp, em que é possível fazer uma busca para ver que tipo de amostra está disponível. E é o mesmo local onde os pesquisadores se cadastram para solicitar as amostras.

Já há alguma inovação a partir de uma amostra de biobanco para prognóstico ou tratamento de alguma doença?

O nosso biobanco é muito recente, por isso, ainda temos poucos resultados em relação a isso. Mas existem esses grandes projetos. Temos um grande financiamento do grupo da Infectologia que vai estudar os pacientes que estão internados com septicemia. Eles vão estudar vários marcadores para ver qual deles indica pior prognóstico e qual paciente precisa de um cuidado mais importante. Este projeto acabou de ser aprovado e as amostras serão guardadas aqui. Imagino que isso vá gerar uma publicação bastante importante. Tem algumas publicações que ainda estão sendo elaboradas de um projeto temático do pessoal da Gastroenterologia que estudou tumores gástricos e utilizou amostras do biobanco para servir de controle para o estudo, que vinham desenvolvendo já fazia uns cinco anos. Como o biobanco é muito recente, ainda é muito precoce para que possamos dizer que vamos ter muitas publicações. Mas a perspectiva é muito grande de desenvolvimento de pesquisas bem impactantes.

“Temos estudos que procuram marcadores para diagnóstico de determinadas doenças. Um exemplo é o câncer, para ver mutações de um gene.”

As amostras são colhidas especialmente de pacientes operados ou que passam por exames invasivos?

Existem duas formas de fazer a coleta. Uma é a coleta sem vinculação com pesquisa, ou seja, a cada cirurgia se coleta o material que é guardado sem vinculação com nenhum pesquisador. Mas isso depende de que o cedente – hoje não se diz mais doação, mas sim cessão de amostra – assine um termo de consentimento livre e esclarecido. O cedente concorda que uma parte do material biológico que seria descartado seja guardado no biobanco. Tudo tem de ser autorizado; são duas páginas de termos de consentimento livre e esclarecido nas quais se informam para que serve aquela amostra. E, mais importante do que isso, se o cedente não quiser mais participar – embora tenha sido colhido o material – tem toda a liberdade de solicitar a retirada daquele material. Por outro lado, também se for vontade do cedente, poderá receber informações de eventuais pesquisas cujo resultado tenha significado para a vida dele. Por exemplo, digamos que se descubra um marcador em que, aos 50 anos de idade, ele terá um tumor. Além disso, temos de informar no caso de ser um gene hereditário e que confira àquela família uma probabilidade de desenvolvimento de um tumor, como a Síndrome de Li-Fraumeni, por exemplo, em que as pessoas desenvolvem vários tipos de tumores. É óbvio que o paciente terá de ser informado de uma forma coerente e existe toda uma ética que precisa ser respeitada. Portanto, o cedente pode exigir que sejam fornecidas informações, pode não querer ser contatado a cada próxima pesquisa e, inclusive, pode exigir que seja consentido novamente. Existe uma tendência atual, que ainda não foi ratificada pela Conep, de se fazer um termo de consentimento no qual a pessoa cede a amostra e, implicitamente, concorda que qualquer pesquisa que seja desenvolvida a partir dessa amostra possa ser realizada, ou seja, um consentimento definitivo.

Existe algum tipo de integração ou troca de amostras entre biobancos?

Este seria o mundo ideal, na verdade. E até está sendo construída, atualmente, uma legislação para coordenar isso. No exterior existe muito isso. Mas, no Brasil, o que existe é a colaboração entre biobancos nacionais e internacionais como, por exemplo, Fiocruz e ICESP têm. Aqui ainda não temos essa colaboração firmada. Mas existe uma rede latino-americana de biobancos que foi, durante algum tempo, coordenada pelo Instituto Nacional de Câncer (INCA) e que tenta integrar os vários biobancos. Existe, inclusive, um site específico para este grupo. Por fim, é importante explicar que existe rede e existem consórcios, que são diferentes. A rede é uma colaboração em que se tenta unificar os procedimentos, de tal forma que todo mundo trabalhe da mesma forma e que possamos trocar informações. O consórcio é mais voltado para uma pesquisa específica: digamos que exista um tumor raro que se queira estudar, e que temos dois aqui, no outro biobanco tem mais dois, em outro lugar tem mais dois, e o conjunto faz uma quantidade suficiente para que haja conhecimento mais abrangente. Então, neste caso, se constitui um consórcio de biobancos para troca das informações, mas com validade estabelecida. Já nos biobancos normais se guarda a amostra por tempo indeterminado.

Isso seria importante para ampliar a capacidade de pesquisa sobre uma determinada doença?

Exatamente, acho que isso é muito impor­tante. A Conep constituiu um grupo de trabalho (GT) de amostras biológicas que está encerrando os trabalhos. Este GT reviu toda a resolução 441 para sugerir modificações, porque houve enormes mudanças de manipulação de amostra, de contribuição e de colaboração entre vários entes. E, por isso, também se menciona um pouco essa questão de colaborações. Estamos aguardando que isso seja publicado. Eu fui um dos membros desse grupo, mas ainda não existe um documento que possa ser oficialmente aberto à população, pois está em análise na Conep.

O que a sociedade pode esperar desses estudos para o futuro?

Vou dar o exemplo do Reino Unido, onde o biobanco é centralizado e tem mais de 5 milhões de amostras, com um sistema robotizado e extremamente desenvolvido. E o que é interessante são as publicações desse biobanco, com muitos estudos populacionais e dados associados. Porque temos de ter dados desses cedentes, por exemplo, a que se refere a amostra, qual a idade e o sexo do paciente, localização e tipo de tumor, qual foi a evolução e o diagnóstico final desse paciente. Enfim, tudo o que está por trás daquela amostra. Temos um programa específico para colocar dados que vão permitir que, com esse banco de dados, se estude epidemiologicamente determinadas doenças. No Reino Unido, recentemente publicaram um artigo mostrando o perfil genético de uma determinada população que tinha amostra no biobanco. Os pesquisadores pegaram os dados clínicos, de genética, de amostras que estavam armazenadas e de perfil das pessoas – que não tinham nada a ver com tumores ou com uma doença específica. Então, por um lado, existe a possibilidade de criar um perfil epidemiológico para tentar conhecer as doenças e ver como a população está e que tipo de marcadores tem que indicam saúde ou não saúde. Por outro lado, vejo a possibilidade de se estudar vários tipos de marcadores. Por exemplo, a doença de Alzheimer está sendo muito estudada porque tem crescido e a população está envelhecendo muito. E o pessoal que estuda Alzheimer está tentando guardar amostras de cérebro e de sangue de pacientes para tentar estudar essas alterações. Será que conseguiremos prever que uma pessoa vai ter Alzheimer? Será que conseguiremos encontrar marcadores que digam que esse Alzheimer vai ser muito grave ou pouco grave? Ou será que conseguiremos descobrir algum caminho que vá curá-lo? Se tivermos uma grande quantidade de amostras disponíveis para uma pesquisa desse nível, acredito que o biobanco terá um papel enorme. •